quinta-feira, 26 de junho de 2008

Para a vó Carolina e suas histórias

Pensava demais. Não por que fazia isso bem, nem sabia se sabia pensar, mas a coisa vinha de um jeito que não se podia controlar. Começava pensando se iria mesmo arrumar aquela bagunça, depois de cinco minutos resolvia que podia viver ali mais um tempo, havia coisas mais importantes a fazer, ler um livro, navegar, ficar a toa, aproveitar seus últimos minutos de sossego antes do vendaval. Daí, pulava pra outro pensamento: pensando em como seria ruim retomar a realidade, e lembrava que tinha que comprar o tal caol para “ariar” as belas peças recém “herdadas” da avó.

Ai, a avó... Essa gostava de contar histórias. Os momentos juntos eram raros, raríssimos, mas preciosos, pois nessas histórias antigas se vislumbrava uma vida diferente, o resgate de parentes que nem se conhecia, a história de uma família. A avó contava, com olhos distantes, e voz de cantiga, a chegada do “papai” com a boneca-surpresa, de “celulóide”, impressionante tecnologia em tempos que para chegar à cidade ainda se usava canoa. Na voz da avó, a narrativa das histórias de lavadeiras que cantavam à beira do rio, e enlevada pelas memórias, a vó também cantava... As lembranças da convivência em casa, o início do namoro com o vô, a chegada dele na cidade, a primeira vez em uma moto, depois num Aero Willys, o pedido de casamento feito sem a presença dela, e na caixinha de memórias, um bilhete do noivo reafirmando a data do casamento. Amarelado, rasgado, manchado, mas ainda se podia ler.
No casamento, personagens ilustres da política da época, e a vó citava os nomes. “Tem foto, vó?”. Quase nenhuma... As filhas haviam “carregado” várias, pensei que assim fragmentavam-se as memórias...

“Vó, como era minha bisavó? Conta aí?” E com os olhos brilhantes, a vó descrevia a bisa, contava de seu jeito atrevido, dava nome e sobrenome de parentes distantes.

Nas histórias, a memória das irmãs todas, quantos filhos tiveram, quem morreu de quê, e em meio a tanta vida, pensei que não se podiam perder essas histórias. “Vó, escreve isso pra gente, assim vamos ter o que contar”. Mas a vó relutava, dizia-se velha para escrever isso. “Vó, então grava pra gente, vai ficar ainda mais bonito”.
Pensava na vó, sozinha, afastada de quase todos. Pensava, para se confortar, que aos menos a vó tinha as memórias de uma vida inteira, e ainda as que estavam por vir. E quer viver para ver os trinetos.

TSM, 26.06.2008

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