domingo, 31 de agosto de 2008

A caminho

“Depois de todas as tempestades
e naufrágios, o que fica de mim em mim
é cada vez mais essencial e verdadeiro”
Caio Fernando Abreu

Olha:
O agosto
Tão bem-vindo
Já se finda
E abre espaço
Para um setembro
Com mais
Primaveras
Que sempre

As flores
São minhas
Cultivo-as
E então
Posso apreciar
Sua beleza.

Chegue sim!
E traga
As cores
E aqui eu,
Pronta
Para Te receber.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Sim!

Tudo neste mundo
(Dizia Clarice)
Começou com
Um sim

Assim
Dei licença
E te deixo
Passagem
Só digo:
Bem-vindo!

Meu sim
E teu sim
Juntos
E então, somos.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Fortuna

Na calçada
Uma borboleta
Passa e pousa
Por um segundo
Apenas
Mas é amarela

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Tudo e mais um pouco

Obrigada
Pelo que preciso
E nem me foi dado
E assim mesmo, obrigada

Obrigada
Porque é certo
Ainda que turvo
E já distingo
Teus olhos

Obrigada
Pelo abraço
Que não me falta
Pelo afeto
Que com abundância
Têm sido
Dado a mim

Obrigada
Pelos passos errados
Pelos caminhos truncados
Pelo que pedi e não recebi

Obrigada
Pois que
Apesar de tudo
Portas se abrem
E ainda posso
E, atrevida, canto.

domingo, 24 de agosto de 2008

Um traço

Um passo
Não dado
Define todo
Um porvir

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Bendita Adélia

"Louvado sejas Deus meu Senhor,
porque o meu coração está cortado a lâmina,
mas sorrio ao espelho, ao que,
à revelia de tudo, se promete."

Bendito, Adélia Prado

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Happy Hour

18h30. Desanimadinha, visto que nada nesse mundo se movia, resolveu tomar um espumante e comer queijo brie, não queria saber se combinavam, na boca o gosto lhe agradava, danem-se os experts, eles não estavam em sua cozinha.
Não tinha emprego, logo sem renda, não podia colaborar para o crescimento da economia do país, não podia se endividar pela TV e colchões novos, nem pela mesa de jantar (precisava de algo decente para receber as visitas, não podia receber visitas sem dinheiro), contava agora os centavos da carteira.
Para passar a noite, resolveu que escreveria. Sobre a sensação de pagar impostos numa cidade/estado que não a empregava, droga de roça grande, essa. Não pagaria porcaria nenhuma até conseguir um trabalho decente (só pobre é assim, não gosta de dever, tem que manter o nome, a única coisa que é dele, já rico deve, deve sempre: dinheiro, muito, favores, todos). E o jornal de ontem ainda dizia que os empregos estavam no interior... Mais essa agora.
Então que a pessoa se esfola para trabalhar/estudar/morar só/sustentar-se, tudo isso aos 21 anos, ganhando algo como dois salários mínimos. Consegue, nem sabe como, mas consegue (isso é que deveria aparecer em “Vídeos incríveis”, sua vida, a de vários, filmada).
Não contente, ela quis ser Alguém. Brigou por uma promoção, cresceu, ficou grande demais onde estava, e precisava de um lugar maior. Foi atrás, e conseguiu de novo, com ela era assim, as coisas aconteciam, e se não, ela fazia acontecer. Chegou Lá, um lugar que já era o Maior do mundo, e não bastasse o Lugar ainda tinha a missão de ser o Melhor do Mundo, assim com maiúscula, todos os continentes. E lá também ela cresceu, contaminou-se com as visões, missões, virou Alguém ainda maior, Alguém gerente, salário bacana, resultados bacanas, dinheirinho no bolso. E enfim, era Alguém, mas Alguém de saco bem cheio de tanta falação, e ralação, e dinheiro nem tão bom assim, pensando bem. E então, virou alguém sem emprego. E agora vai dormir, porque acabou de tomar um leite quente com chocolate, e amanhã precisa continuar a busca, precisa voltar a ser Alguém.

Todas as noites, na minha janela

"Lua,

Espada nua

Bóia no céu imensa e amarela

Tão redonda a lua

Como flutua

Vem navegando o azul do firmamento"




Luiza, Tom Jobim
Foto em 16.08.2008, TX

sábado, 16 de agosto de 2008

Para limpar a casa-alma


Então, Pessoa. Pasmo!
Olho ao meu redor, tudo limpo:
Cozinha, banheiro lavado,
Chão brilhando, camas arrumadas,
Quase tudo em seu lugar.
E meu corpo moído.
Porque é assim, aqui nessas paragens.
Eu, que às vezes me finjo poeta,
Também às vezes
Preciso fazer a faxina.
Sou Amélia, sou Adélia.

Em ambos os casos,
Sou eu seguindo meu destino,
Cuidando minhas rosas,
Meus mundos.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Randômico


No princípio,
Gosto comum
Afinidades assim
Estreitavam laços,
Sentiam-se quase um,
Recompensa pelos sós
Tanto tempo antes.
Então divergências,
Nada de mais,
Uma cor que ao outro
Não agradava tanto.

E daí?
Agora sei que de você
Quero mais que afinidades.
Diferenças fascinam,
O novo me inquieta,
Só olhos curiosos
Mantêm mentes abertas.
E sim, arestas me interessam.

Eu sou a falta

O abandono, Camille Claudel


Uma madrugada. Princípio ainda. Eu me sentia muito estranho. Não era triste, triste. Mas algo assim, melancólico. Talvez esse sentimento incomode você, dito assim. Fazer o quê? Era como eu me sentia.
Podia fumar, mas “parei” há mais de um mês. Andar, a essa hora, em cidade grande, e sozinho, não é coisa recomendável. Beber? Metade da graça era o cigarro de acompanhante (volte ao início). Então restava contar pra você dessa melancolia triste de início de madrugada, e desafogar um pouco, quem sabe, esse coração.
Nem era melodrama: com amor, com casa, com família, sem mesmo era trabalho, mas que isso era pouco diante dos problemas de alguns. O olho, o coração, o corpo todo é assim: só sabe do que não tem. E o não ter grita, impõe sua não presença em todos os cantos: pensamentos, sentimentos, conversas, solilóquios. Não ter só sabe existir grande, exagerado, não ter é uma perua recém-saída das compras na 25 de março, e veste laranja, verde limão, usa saldo, cabelão, lantejoulas, batom vermelho, tudo ao mesmo tempo. Não tem como não ver. O não ter não sabe ser leve, não pisa macio, finca sim o salto no chão que pisa, e faz barulho.
Uma madrugada assim, idiota. Nem vontade de chorar. Nada consola, não há o que consolar. E você, conta aí: o que te dói, o que te consola? Qual é o seu não ter?


(Para Caio F., depois de ler “Pálpebras de Neblina”)

Cada um à sua maneira



“Segure seu humor. Seguro o meu, mesmo dark: vou dormir profundamente e
sonhar com uma linda e fatal jamanta. A mil por hora.”
Caio Fernando Abreu




Ando relendo Caio Fernando Abreu, Pequenas Epifanias, com crônicas publicadas entre 1986 e 1995. Relendo é modo de dizer, já que o tenho sempre à mão, consulto como um manual, amo com paixão seus escritos.
“Deus é Naja” me chamou a atenção, e vale à pena ler, como tudo de Caio. É sobre manter o humor em tempos difíceis. A maré não anda pra peixe. Todos, eu disse todos, têm problemas. Variam os tamanhos e conseqüências, mas cada um sabe como, e onde, doem os seus.
De mim, sei dizer que escolhi uma forma de encarar, e ela inclui o bom humor. Não digo que não sofro, e mais: em momento drama-mexicano, consigo imaginar o poço mais fundo, fétido e podre, e eu no fundo mais fundo dele, coberta até a cabeça de estrume. Minha imaginação faz inveja.
Quando mais lúcida, consigo rir dos meus problemas, mesmo quando mais sérios. Como diz Caio, nessas horas busco o ponto onde o trágico perde o sentido, podendo até ficar meio cômico, só assim para agüentar quando dói demais. É certo que nem tudo se leva leve desse jeito, cada um com seu limite.
Não receito nada a ninguém, não sou médico e vocação para terapeuta, tenho zero. Muito mais ou menos, ando dando conta de mim. Escrevi aqui só mais um jeito de pensar. E penso que quando nada mais servir, vou contar uma piada besta, gargalhar, só não vou sonhar com minha jamanta própria.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Impublicável

Tanta leitura tinha que servir para alguma coisa. Nem que fosse pra escrever uns textinhos medíocres, e publicar na internet, ainda que ninguém fosse ler. Ai, internet e seus blogs. Agora, todo mundo pensa que é escritor.

Que mentezinha essa sua hein? Então, cadê a democratização que vive em você? Por acaso, escrever é para abençoados? Coisa de iniciado, círculos fechados e afins? Deixa de ser bobo, que falar da vida é para qualquer um, para mortais, para comuns. Porque eles sabem mais que acadêmicos, estudados, e sabem mais que gente que tem muita técnica, mas da vida pode dizer pouco. Escrever é para qualquer um que sente, independe de escolaridade, dinheiro, status, classe social. Porque da vida sabem todos aqueles que vivem.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Ócio e ofício

“I don't care if monday's blue
Tuesday's grey and wednesday too
Thursday I don't care about you
It's friday I'm in love”
The Cure


Tenho descoberto umas alegrias diferentes com a idade. Das últimas, a que mais me chama a atenção, a que mais gosto é a alegria das sextas-feiras... Até dei de presente a elas uma música, e para me ver feliz, basta cantarolar.

Se é segunda, terça, pouco importa. Desde que lembrada, a danadinha da música me traz a sexta feliz à cabeça. Nem precisa ser AQUELA sexta, que antecipa um fim de semana fenomenal. Pode ser a sextinha de sempre, o que aliás tenho preferido. Não precisa festa de arromba, encontros sensacionais, programas incríveis, viagens internacionais, nem sítio, nem cachoeira, nem mesmo sol é necessário. Veja bem: pode ter, mas não PRECISA. Bastam a companhia de quem quero muito, uns poucos e bons filmes, um bom edredom (até sem inverno eu topo), e um descompromisso total com horários e agenda e, tenho certeza, terei o fim de semana perfeito.

Deve ser reflexo, penso eu, do excesso de obrigações que temos: chegar ao trabalho sem atraso, almoçar cronometrando os segundos entre congestionamento de carros nas ruas e pessoas nos restaurantes, não esquecer de pagar o condomínio, aproveitar a liquidação de inverno, fazer as unhas, molhar as plantas, batizado do filho da prima, casamento da filha do vizinho da vó, aiiiii! Com tanta agenda, a sexta-feira vira alvará de soltura, carta de alforria, ainda que temporária, portas abertas para um sábado e domingo de pura preguiça e falta do que fazer.

“Eu quero uma licença de dormir, perdão para descansar horas a fio”, dizia Adélia Prado. Eu também preciso dessa licença para o nada, bendito o ócio nosso de toda semana.

Inhotim, Brumadinho, MG, Brazil









Eu em Inhotim, programa imperdível para quem vive em BH. Não deixe de conhecer!

Além de jardins incríveis, projetados em conjunto com Burle Marx, Inhotim tem um acervo artístico lindo, de encher os olhos até de leigos em arte, como eu. Para ver antes, http://www.inhotim.org.br/

A fé no outro


“Correr com lágrimas nos olhos
não é definitivamente
para qualquer um”
Lobão


Foi recebida com braços semi-abertos. Não sem razão, em tempos em que, infelizmente, não se podia confiar tanto assim. Não que houvesse rudeza no trato, isso não. Havia, claro, a educação, mas se percebia a distância, uma certa “desconfiança”, mineiro é assim, diriam. Mas não deu bola para isso, seguiu abrindo caminho aos poucos, sem ninguém perceber, nem ela mesma.

As presenças necessárias, as festas, o social, foram suas entradas naquele mundo. As conversas, a princípio, tímidas, mas não se poupava, e tratou logo de ser ela mesma, falando a esmo, vencida a barreira primeira da timidez. Ora, ora. Não parecia, mas era tímida. Aquele ser meio “bicho do mato”, e que uma vez sem vergonha, falava de tudo: do que entendia, daquilo que não sabia e até dava palpites sem ser chamada, e quando chamada também. Aí descobriram gostos parecidos, diferenças, se apresentaram novas cores, sons, músicas. Aproximaram-se lentamente, como são os inícios de grandes amizades, grandes parcerias. Ao que parece, perceberam que algo comum os unia, e isso os faria dividir uma vida também em comum, e entenderam-se bem.

E então, em um dia que não se lembra bem qual (é certo que algo se comemorava) encontraram-se para almoçar e celebrar. Naquele dia, depois de satisfeitos todos à mesa, ela percebeu que fazia parte do grupo. Nem havia demorado tanto tempo assim, e os braços se abriram, fortes, largos, num abraço em que ela coube sem folga, na medida exata de sua necessidade e da deles. Um abraço de onde (isso sabia) não sairia nunca mais.

Excessos

Nada era ponderado, comedido. Se tinha nojo, era pra vomitar. Na raiva, um acesso. Na preguiça, enrolava-se de não fazer um movimento. Que coisa isso de ser inteira! Queria, às vezes, ser pela metade, talvez desse menos trabalho. Nesses dias, então, quando cismou de ser infeliz, estava miserável. Não conseguia ver a metade cheia, era a metade vazia que lhe gritava, berrava a ausência. O corpo doía de nada, o cansaço invadia, e sem motivos, apenas, caprichoso, ficava, estendia sua permanência ao limite do insuportável. Não havia (quase) salvação.
O limite. Quase chegando. O medo era de não haver mesmo a salvação. No fundo, guardava aquela certeza, quase lucidez, da saída próxima. Mas agora até disso duvidava.

Rascunho

Não estava a fim de nada, estava a fim de tudo. Sentada, deitada melhor dizendo, ela olhou mais uma vez a TV, onde não se via nada. Pensou em dar uma volta no shopping, dois minutos, toca o telefone. “Vamos ao shopping? Preciso comprar umas coisinhas aqui, ali, logo a gente se vê e põe em dia”. Não quis. Ficava em casa mesmo. Vinha um desânimo, uma tristeza tão grande hoje, que teve pena de si mesma e tentou chorar. Lágrimas de 2 segundos.

Shopping? Ela que adorava uma prestação, cartões com crédito absurdos, e uma vontade maior ainda de gastar para tapar o buraco. Ia fazer o que lá se não podia usá-los? Não tinha o dom da abstração, gostava mesmo era do palpável. Tudo bem, superficial isso, mas a vida tem dessas coisas, tudo se mistura em algum momento. Continuou num sentar-deitar de quase fazer dó.

Mais meia hora de nada na TV, outro telefonema. Agora a irmã: já tomou a vacina? Não, não tomou, aliás nem lembrou. E aí até se animou, animou a irmã para já encarar a fila, pôs uma roupa qualquer e desceu. Nem trinta minutos e tudo resolvido. Saiu com a irmã, pegou a mãe no caminho, deixou-as em casa. Na volta, passou na padaria, pão, leite, café, o trivial. Padaria cheia, todo mundo envolvido com o café da tarde, vida classe-média tarde-de-folga-sábado-normal. E nela, voltou uma sensação de calma, tudo estava como tinha que ser. Quando as coisas iam ser mesmo normais?

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Eu

Auto-retrato, era digital, Londres, 04.2007, muito fria

Eu, quando percebo, estarreço-me
Não sendo Fernando Pessoa, não pasmo
Dificilmente desolo-me
Mas começo e acabo coisas, sim
Embora sejam caóticos
Os pensamentos todos
Que ando pensando
Encanto-me
E encanto
Quem se deixa levar
Falo sem ciência
E no entanto
Minha fala tem paixão
A paixão que consome
A paixão de quem
Quer da vida
As Cinzas dignas de Caio
Muito mais que
Matérias intactas

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Para recordar, um avô


Não era um avô convencional. Aliás, hoje existe família convencional? A começar pelo fato de não viver na mesma casa que a avó. Eram separados, e suas casas ficavam a menos de 100 metros uma da outra, e assim levavam a vida quase que do mesmo jeito. Ele aparecia para o café da manhã, almoço e janta (que é como se diz no interior), infalível e diariamente. Os cafés ao longo do dia, e eram muitos, também eram todos na casa dela. E ela, a vó, implicava com ele, implicava com a “bagunça dessas meninas”, implicava com tudo.

Dele, a menina lembra da Brasília azul, e muito antes dessa, havia também os jipes, um azul, outro verde, e todos os primos (uns 5?) mais a família quase toda enfurnada neles, cortando sertão para chegar na roça. Saudade da roça! Mas essa fica pra outra vez.

O vô ficava na porta da casa, e isso era praticamente como estar na rua, visto que as casas do interior são assim, sem portão, sem jardim, e as janelas e portas se abrem diretamente para as calçadas. Ao fundo, e bem alto, tocavam uns discos de tango ou bolero, ela não sabia dizer, era uma criança. Mas as músicas eram melosas, cantadas quase sempre por alguém com uma voz grossa, e as letras de amores. Ela se lembra, como hoje, dele parado na porta, com as mãos no bolso, sempre arrumado, fazia chuva ou sol, estava ele com a calça e a camisa social. E nos pés, nada de sapatos (será que era dele que havia “herdado” a mania?). No bolso de trás da calça, um pente antigo, desses que não se acha mais, com uma alça onde se punha a mão e já saía com o danado no ponto de uso: passava o pente na cabeça, ajeitando o cabelo quase raspado, sempre vaidoso o avô.

Fumava cigarro de palha, e gastava tempo cortando o fumo de rolo com o canivete, picotando até ficar bem esfarinhado, aí pegava a palha, abria, jogava o fumo, enrolava a palhinha e passava a língua para selar. O ritual terminava com o cigarro sendo aceso, com fósforo é claro, e as batidinhas com a caixa (para manter a brasa) até o fim das tragadas. A cena era nítida na memória da menina.

Ela não teve o privilégio da convivência diária com o avô, eram netos criados na cidade grande. Só se viam nas férias, quando ele recebia as meninas sempre com um comentário brincalhão, “Uai, quem são vocês que eu não conheço mais?”, se referindo ao fato delas terem crescido, e por aí ia.

O tempo passou, e cumprindo sua sina?, o avô se foi. A morte dele, é claro, deixou a neta triste. Mesmo assim, a menina nunca conseguiu recordar-se do avô com tristeza, e apesar de tantos anos de ausência, ela sempre o lembra com alegria imensa, ainda vê nele uma figura protetora, brincalhona. Ele foi e sempre será o avô das gracinhas, das risadas abafadas enquanto a avó implicava, o avô que trazia picolé de creme de ovos do bar, o avô que esperava por elas na porta quando chegavam as férias, sempre com um sorriso no rosto. Que chamava de “cu d’água” as meninas quando faziam xixi na cama. Ele era aquele que, quando a vó implicava e xingava porque os netos tinham comido todo o pão e biscoito da mesa, na maior falta de educação, dizia alto: “Deixa os meninos, Calú”.



terça-feira, 5 de agosto de 2008

Mensageiro


Choveu...
E daí que só por isso
Agosto se fez diferente,
E desanuviou a paisagem
Cinzenta
Dos dias de umidade baixa.

A planta, agora úmida
Agradecida
Planeja ganhar viço,
E a esperança
Em mim, também
É assim:
Viceja por muito
Pouco
Ou até mesmo
Quase nada

Dolce vita - paradoxo do tempo


Aí aconteceu o esperado: ela perdeu o emprego. Perdeu é modo de dizer, porque lembrou-se de como já estava infeliz ali, de como passava os dias contando as horas e minutos e segundos para ir embora. E passava as semanas contando quantos dias faltavam para a sexta. E contando quantos meses faltavam para as próximas férias ou feriado prolongado. Uma agonia, aquilo. Mas precisava pagar as contas e, acomodada, foi ficando por ali mesmo, infeliz da vida.

Ela se conhecia, e sabia que aquilo não poderia durar, já que não agüentava viver assim, com hora marcada pra ser meio triste. E convenhamos: bater ponto na tristeza é muito, mesmo para o mais conformado dos viventes.

Percebeu uma estranheza no ar bem antes do ocorrido, dada que era a uns surtos de premonição. Não sabia bem o quê, nem como, nem por quê, mas cantou a pedra meses antes do fato, e já anunciava aos mais íntimos que isso poderia acontecer, mais cedo ou mais tarde. Ba-ta-ta!! Como diria a avó. Pensou um pouco: é certo também que de alguma maneira buscara aquilo, e ela sabia. Não escondia sua insatisfação ali dentro, e só faltava verbalizar. Não, nem isso faltou.

Viu-se então diante do incerto, e pela primeira vez em quinze anos (com exceção das férias) não tinha que levantar cedo e sair correndo para o trabalho. A falta do que fazer não era um problema, já que ela cultivava prazeres os mais variados, não vivia só para o trabalho, tinha uma vida pessoal quase plena (era humana) e satisfatória, a despeito das tentativas diárias das corporações de sugar seu sangue e alma para o trabalho. Sua crença, essa foi mantida intacta: acreditava no trabalho como meio de vida, e não pavimento para a morte. Mortes variadas: a literal, do corpo, a morte da alma, das brincadeiras com os filhos, morte da leitura, de ouvir boa música, de ter tempo para os amigos, do tempo de pegar um cinema com a irmã e até mesmo do tempo para ficar sem pensar em nada, morte do tempo de viver para ser feliz.

Tratou de continuar vivendo, foi buscar outras chances, pensando se era mesmo aquilo que queria. Releu livros, descobriu outras músicas, dormiu de tarde, viu filmes de madrugada, namorou sem ter hora de acabar, cozinhou, arrumou a casa, construiu novos afetos, limpou a estante, vai até doar alguns livros (e mais alguns, se conseguir se desapegar), fez fotos bacanas, está aprendendo a curtir pintura, fez o que tinha e não tinha direito.

Continua desempregada, não à toa, vejam bem. Disseram que seu currículo é “muito bom”, e sua recolocação no “mercado de trabalho” está suada. Nem se assustou com o diagnóstico da moça da empresa de headhunters, a mediocridade da vida inunda tudo. Ela precisa pagar as contas, e segue buscando, sem saber muito o que quer, tem seus dias de descrença, até uma certa “revolta” pinta, mas sabe que vai acontecer. Ah: ela está nesse momento descobrindo a música clássica, aprendendo a viver sem culpa, e parece que anda escrevendo uns textos, e achou alguns até bem legais.

O poetinha na madrugada

Redondilhas para Tati

Sem ti vivo triste e só
(Bastasse o que já sofri... )
Sem ti sou ermo, sou pó
Sou tristeza por aí...
Sem ti... ah, dizer-te a ti!
Mas se me cerra o gogó
Como se tivesse aqui
Um naco de pão-de-ló!
Sem ti sou pena de Jó
Sou ovo de juriti
Sem ti sou carandaí
Tamandaré, Mossoró
Sem ti sou um qüiproquó
Um oh, um charivari
Sem ti, sou de fazer dó
Sou de fazer dó-ré-mi
Meu benzinho de totó
Meu amor de tatuí.
Mas sou forte não reclamo
Sou bravo como Peri
– Não, mulher, já não te amo!
(É brincadeira, hem, Tati... )
Tati, Tatuca, Tatica
Onde ficou minha tática
Perdi toda a velha prática...
Esta vida é uma titica.
Ah, garota, francamente
Nem sei mais o que pensar
És tu que estás tão presente
Ou eu que fui me casar?
Não posso, Tati, te juro
Não posso viver sem ti
Tu és meu cantinho escuro
Meu verso por descobrir
És meu eterno oxalá
Em terra de alibibi
És meu trecho de Zola
Repassado por Delly
És Totonha, Tatiana
Tereza, e nunca Tati
És extrato de lavanda
Rotulado por Coty
Beatriz?... mas quem és tu
Para Dante abandonar?
Sereis um merci bocu
De praga de pai Exu
Para cima de moá?

Não! Tu és como o penedo
E eu... como a onda do mar
És a sombra do arvoredo
E eu... pastor a descansar
Sou o ouvido, és o segredo
És a luta, eu sou a paz
És Beatriz Azevedo
E eu Vinicius de Moraes.

(Vinícius de Moraes)

Saudação


Agosto começou em plena sexta, dia que adoro, nem sei o motivo. Ou melhor, imagino, começo a ficar feliz na quinta. O sol ajuda a deixar o dia lindo, apesar da secura incomum, e no caso da minha vizinhança, agravada por construções infindas, que só fazem nascer pó do chão dos apartamentos. Quem limpa?

Eu? Entrei só para te dar as boas vindas.
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